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Mercado livre do gás: principais desafios da migração

23.08.2021


As características de criação e desenvolvimento do mercado de gás no Brasil ao longo dos anos levaram à existência de barreiras significativas em todos os elos da cadeia de valor do gás, cuja superação demanda, ainda hoje, esforços contínuos e coordenados dos diversos agentes envolvidos em várias frentes de ação.

Assim, o estímulo ao novo mercado de gás natural a partir do ano de 2016 por meio do Programa Gás para Crescer e depois por meio do Novo Mercado de Gás teve como pilares, sobretudo: a promoção da concorrência; a harmonização das regulações estaduais e federal; a integração do setor de gás com setores elétrico e industrial; e a remoção de barreiras tributárias.

Nesse contexto, a aprovação há muito esperada do novo marco legal do gás natural do Brasil, com a publicação da Lei nº 14.134/21 (Lei do Gás) e, mais tarde, do Decreto nº 10.712/21 (Decreto do Gás) — cuja campanha dominou a cena da indústria especialmente nos últimos anos –, reavivou no setor a enorme expectativa de desenvolver um efetivo mercado de gás natural no país, com dinamismo, potencial atrativo para novos agentes e aumento da liquidez com a ampliação de oferta e demanda.

A Lei e o Decreto do Gás trouxeram avanços relevantes esperados pelo setor, já debatidos há alguns anos por meio do Gás para Crescer e do Novo Mercado de Gás.

Por exemplo a implementação do sistema de transporte pelo regime de entradas e saídas; a aplicação do regime de autorização para transporte e estocagem de gás natural, a ampliação do rol de infraestruturas essenciais e third party access; e a desverticalização, com independência e autonomia da atividade de transporte e distribuição (ainda que estruturada de forma diferente para cada um desses segmentos).

Os desafios, no entanto, não foram todos superados com a publicação do novo marco legal.

Os novos agentes têm verificado, na prática, muitas complexidades, que exigem deles uma análise cuidadosa para poder obter os benefícios potencialmente oferecidos pelas medidas de abertura do mercado de gás.

Entre as várias adversidades enfrentadas pelos agentes e governos no processo de criação de um mercado líquido de gás, uma das mais relevantes deriva do fato de a Constituição Federal conceder aos estados a competência para explorar os serviços locais de gás canalizado.

Os estados têm competência exclusiva para regular e prestar serviços de gás canalizado, dentro de seus limites, aos participantes do mercado livre (consumidores livres, autoprodutores e auto importadores, referidos como “agentes livres”) e do mercado cativo (consumidores residenciais e industriais, entre outros que não atendem aos requisitos para ingresso no mercado livre).

Os serviços podem ser prestados diretamente pelo estado ou via concessionárias de distribuição (CDLs).

A bipartição entre as esferas federal e estadual produz um efeito prático extremamente relevante, sobretudo para os agentes livres e potenciais comercializadores: a multiplicidade de regimes regulatórios estaduais, que traz as mais distintas implicações e desdobramentos, que os agentes interessados em entrar no mercado livre de gás devem observar.

Além das diferentes regulações estaduais, esses agentes devem cumprir as regulações estabelecidas pelo governo federal, responsável por regular as atividades de carregamento e comercialização de gás natural, entre outras.

Atualmente, os estados estão em diferentes estágios de maturidade no que diz respeito à regulação do mercado livre.

Amazonas, Sergipe, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul têm regulações recentes para o mercado livre, publicadas entre 2019 e 2021.

Portanto, dos 26 estados brasileiros, apenas oito têm regulações recentes que tendem a refletir de modo mais adequado o atual estágio do mercado de gás nacional.

Além das complexidades relativas ao cumprimento das diversas regulações estaduais e federais, o que impõe inevitavelmente elevados custos para o agente que deseja migrar para o mercado livre, é preciso ter em atenção especialmente os desafios gerados pela existência simultânea – e, em certa medida, pela necessidade de compatibilização – dos principais contratos característicos desse mercado:

Contrato de Compra e Venda de Gás (Gas Supply Agreement, GSA); Contrato de Transporte de Gás (Gas Transportation Agreement, GTA), que pode ser de entrada e/ou de saída; e Contrato de Uso do Sistema de Distribuição (CUSD).

Um agente que pretenda ingressar no mercado de gás pode optar por diferentes arranjos contratuais, de modo que não seja parte nos três contratos mencionados, mas apenas em dois deles.

Um consumidor livre pode, por exemplo, não ser responsável pela contratação do transporte, quando ela fica a cargo do seu supridor. Nesse cenário, o consumidor livre contrataria apenas o suprimento de gás (GSA) e o serviço de distribuição de gás (CUSD) da CDL.

No entanto, a exposição a diversos contratos, com diferentes partes contratantes em diferentes elos da cadeia intrinsecamente relacionados, eleva substancialmente os riscos agregados da migração para o mercado livre, exigindo dos agentes uma avaliação integrada e cuidadosa.

Entre os principais pontos sensíveis decorrentes da coexistência e coordenação dos contratos e regulações mencionados acima, destacam-se:

Aviso prévio para a migração para o mercado livre e desistência do aviso

A emissão do aviso prévio pelo agente à CDL o vincula àquele prazo específico para efetiva migração e consequente interrupção de fornecimento de gás pela CDL.

O momento de envio do aviso prévio deve ser cuidadosamente avaliado pelos agentes, sobretudo tendo como foco a vigência do seu contrato de fornecimento com a CDL, já que eventuais atrasos no cronograma planejado da negociação e execução do GSA e GTA que provoquem o descasamento do início de vigência dos contratos podem representar elevado risco de desabastecimento de gás para o agente e a exposição a penalidades no âmbito de um ou mais contratos.

Nesse cenário, a possibilidade de desistência de aviso prévio é importante instrumento para o agente que busca mais segurança e previsibilidade para a migração.

Contratação simultânea no mercado livre e cativo

Em alguns estados, ainda há bastante incerteza quanto a certos aspectos envolvendo a possibilidade de contratação de gás no mercado livre e cativo simultaneamente, o que caracterizaria um consumidor parcialmente livre.

Apesar de ser permitida a contratação simultânea em muitas regulações estaduais, a falta de clareza em relação ao volume a ser contratado em cada um dos mercados representa um risco para o agente.

A contratação simultânea também é um mecanismo muito apreciado em um momento de transição, pois pode mitigar os riscos de interrupção no abastecimento de gás citados no item anterior.

Acúmulo de penalidades entre os contratos

A probabilidade de o agente sofrer penalidades simultâneas por causa de um mesmo evento em todos os três contratos ou em pelo menos mais de um deles é consideravelmente alta, especialmente em uma indústria de rede.

Questões operacionais que tangenciam esses contratos devem ser particularmente avaliadas para que se possa ter uma visão precisa do risco apontado. A análise do empilhamento de penalidades requer especial atenção do agente na ponderação dos custos relativos à migração para o mercado livre.

Venda de quantidades excedentes

Em alguns estados, o agente livre deve habilitar-se como comercializador – perante o estado e a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) – para que possa exercer uma gestão eficiente de seu portfólio, realizando a venda da quantidade excedente de gás.

Tais imposições regulatórias significam mais burocracia e custos para o agente que pretende migrar.

Tarifas aplicáveis ao mercado livre

A incerteza quanto às tarifas aplicáveis aos agentes livres é um ponto relevante de atenção. Regulações que dão pouca previsibilidade às tarifas (um dos principais elementos considerados na migração) tendem a desencorajar os agentes a migrar.

Construção de dutos dedicados

A construção de dutos dedicados é um tema muito sensível para determinados agentes cujos projetos dependem substancialmente da construção de certas infraestruturas que envolvem elevadíssimos investimentos.

A ausência de clareza sobre o tratamento regulatório na negociação e execução de investimentos de elevado porte representa um desafio adicional a ser enfrentado pelo agente interessado no investimento.

Contratação do transporte – chamadas públicas para a contratação de produtos firmes de longo prazo

O agente deve estabelecer um cronograma de migração para acomodar com segurança e eficiência as chamadas públicas para a contratação do transporte.

Há ainda a possibilidade de avaliar produtos não firmes e de curto prazo que podem, em diversos cenários, ajudar agentes cujas necessidades sejam supridas por essas modalidades ou que queiram utilizá-las em um momento de transição, até a contratação de capacidade firme por meio de chamada pública.

Apesar dos reconhecidos avanços introduzidos pela Lei e pelo Decreto do Gás, há pela frente um longo caminho de amadurecimento até que o mercado brasileiro alcance a liquidez, dinamismo e competitividade tão desejados.

Um dos aspectos desse caminho está relacionado à própria curva de conhecimento dos agentes sobre os seus novos papéis e responsabilidades na nova configuração do mercado.

As dificuldades apontadas, no entanto, não inviabilizam o desenvolvimento conjunto de soluções criativas para enfrentar os desafios que se apresentam.

É preciso que cada projeto seja cuidadosamente estudado para que os riscos sejam mitigados da forma mais eficiente.

A junção de esforços dos atores do mercado continua sendo uma das maneiras mais eficazes para elaborar soluções capazes de equacionar ou minimizar os riscos existentes.

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Autor: Maria Fernanda Soares e Mariele Milhorance

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