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Aproveitamento estratégico da reservação hidráulica no Sistema Elétrico Nacional

27.11.2019

Apesar de todas as dificuldades com as quais convive a maioria dos países para suprir suas necessidades de energia elétrica, o Brasil tem conseguido administrar bem esta situação. A forma de gestão elétrica brasileira foi gradualmente desenvolvida, sempre aproveitando as circunstâncias tecnológicas, como a evolução dos computadores e da automação, bem como os percalços operacionais vividos, incrementando métodos de planejamento e modificando práticas operativas. Desta forma, o Brasil dispõe, hoje, de uma hierarquia institucional formada pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), Ministério de Minas e Energia (MME), Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e um grande número de agentes que executam as funções de planejamento, geração, transmissão, distribuição e comercialização da energia elétrica, em um espaço de dimensão continental. A atuação deste conjunto de órgãos e entidades faz com que seja possível acompanhar, com grande acuidade, as informações originadas nas várias e distantes partes do Sistema Interligado Nacional (SIN). Assim, é possível detectar as necessidades de reforços energéticos, como a geração térmica, diante de situações de previsíveis insuficiências de reservação hidráulica, sendo esta ainda a responsável pela principal fatia da geração de energia elétrica, no Brasil. Adicionalmente a este acompanhamento e dispondo de previsões meteorológicas de curto prazo, o planejamento eletro energético conta com históricos de demanda e cenários de crescimento econômico, nas várias regiões do país. Desde o início deste século XXI e acentuadamente na última década, novas formas de geração de energia elétrica vêm ocupando fatias crescentes da matriz energética brasileira. Dentre elas, destacam-se a geração eólica e a geração solar fotovoltaica, as quais, já em 2029, segundo projeções da EPE (PDE 2029), vão atingir 62 GW, frente à capacidade instalada das usinas hidrelétricas de 104 GW. Diferentemente da geração hidráulica, com reservação de água, e da geração térmica, com reservação de combustível, as gerações eólica e fotovoltaica não apresentam estabilidade de produção, apesar de ser inegável a nobreza ambiental de aproveitamento de ventos e luz solar, fontes limpas e perenes. Além disso, destaca-se a redução dos custos dos equipamentos destas fontes, o que explica o seu rápido crescimento. A energia gerada por estas novas fontes é lançada no SIN, mas, face às variações de vento e de insolação, é necessário contar com algum tipo de armazenamento ou compensação para suprir suas rápidas variações de geração. Os montantes de geração eólica e fotovoltaica injetados no SIN ainda são pequenos em relação ao todo e suas variações têm sido absorvidas com pequenas flutuações de valores de frequência e de tensão nas redes de transmissão e distribuição, dentro das margens seguras do sistema interligado, e, adicionalmente, com ajustes na geração hidráulica. Sob o ponto de vista técnico, com o crescimento da produção destas novas fontes de regime variável, será necessário introduzir, no sistema elétrico, formas de armazenamento de energia que possam ser utilizadas para compensar essas naturais variações de geração elétrica. Apesar de alguns estudos apontarem a utilização de baterias como uma solução para armazenar energia elétrica para ser utilizada na compensação da flutuação da geração eólica e fotovoltaica, a quantidade de armazenamento necessária é, geralmente, grande e aumenta de acordo com o crescimento dos volumes da geração intermitente. Além disso, o custo decorrente não é desprezível. Apoiada pela evolução da Eletrônica de Potência e da Tecnologia da Informação, a reservação hidráulica tem sido considerada como o principal recurso de compensação, necessitando, porém, da modificação dos princípios operacionais e de velocidade na regulação da sua geração. Assim, além dos múltiplos usos da água dos reservatórios das hidrelétricas, dentre os quais a irrigação, a navegação fluvial e o saneamento básico, eles terão que suportar, também, as flutuações de compensação das fontes eólica e fotovoltaica. Os ajustes necessários nos equipamentos e métodos operacionais para enfrentar essa nova situação são assimiláveis pela competência dos profissionais que atuam no Setor Elétrico Brasileiro. No entanto, há uma preocupação de caráter geral, que precisa ser enfrentada: a utilização da capacidade de reservação hidráulica que o setor elétrico integrado dispõe. Considerando as dificuldades instransponíveis de construção de novos reservatórios, por vários motivos, o crescimento da capacidade de reservação hidráulica não irá acompanhar o crescimento da carga que se vislumbra. O Gráfico 1, retirado de estudo do ONS, indica que, como a carga crescerá e a energia armazenada não, a capacidade de regularização dos reservatórios irá reduzir, gradualmente, até 2023. Gráfico 1 Fonte: ONS, PEN 2019, Sumário Executivo, www.ons.org.br. Com isso, além do crescimento da geração das novas fontes de energia elétrica, deverá haver um crescimento da geração térmica e uma utilização mais intensa dos reservatórios hidráulicos, que hoje não são utilizados em sua integral capacidade e potencial para este tipo de operação. No tocante à geração térmica, ela será beneficiada pelos seguintes fatores. As descobertas de volumes generosos de gás na costa brasileira (pré-sal) e a queda do preço do gás natural no mercado internacional apontam para sua utilização como o combustível preferencial na geração de energia elétrica. A EPE, de acordo com os dados do Gráfico 2, projeta um crescimento significativo da capacidade instalada da geração térmica a gás natural, passando de 12,9 GW, em 2019, para 35,7 GW, em 2029 (PDE 2029). Assim, esta fonte irá substituir, em grande parte, usinas a óleo atualmente em operação, mais caras e poluentes, conforme os contratos delas terminem. Gráfico 2 Fonte: EPE, PDE 2029. Quanto à utilização mais intensa da energia armazenada nos reservatórios hidráulicos, há algumas medidas a serem tomadas e atenções a serem observadas. Inicialmente, é necessário aferir as reais capacidades de reservação e de utilização dos atuais reservatórios hidráulicos, pois, com o tempo, as características de projeto se modificaram, por assoreamento, por novas utilizações da água e por novas limitações de uso da aparente capacidade disponível, como ocupações nas margens dos reservatórios e a necessidade de regulação de cheias. Há, ainda, a necessidade de confirmação das reais capacidades dos hidrogeradores elétricos, com a finalidade de verificar os limites operacionais que eles podem responder. Além disso, há uma “forma de operar” que deve ser revista. Hoje, a operação do sistema gerador hidroelétrico é realizada a partir dos resultados do processamento de softwares complexos, que visam o despacho mais econômico das usinas, respeitando um modelo matemático que foi considerado por ocasião de sua elaboração. Esse modelo avalia o risco de faltar água nos reservatórios, dentro das normais premissas de consumo. A utilização dessas indicações é chamada de despacho respeitando a “ordem de mérito”. Ocorre que existem outros aspectos a serem considerados no despacho de usinas elétricas, como a percepção de situações hidrológicas atípicas e de crescimento mais acelerado da demanda, além de outros influentes que o modelo matemático em uso não consegue capturar. Nesses casos, os níveis mais elevados da cadeia decisória do setor elétrico optam por autorizar medidas excepcionais, em favor da segurança da disponibilidade elétrica, como a autorização da aplicação de bandeiras tarifárias (amarela e vermelha 1 e 2). Estas bandeiras, graduadas nas suas três intensidades de cobrança adicional à tarifa, configuram uma forma de operação chamada de despacho “fora da ordem de mérito”, ou seja, autoriza uma geração térmica adicional e diferente do recomendado pelo modelo matemático. Aqui, reside um importante aspecto de princípio estratégico que, até agora, aparentemente não foi considerado ou levado ao entendimento dos consumidores. O modelo matemático e as medidas autorizativas de operação “fora da ordem de mérito” têm como foco o risco de falta de energia elétrica, o que faz com que se utilizem os reservatórios até o seu limite mínimo. No entanto, não existem critérios estabelecidos para o abastecimento dos reservatórios hidráulicos até que atinjam seus níveis máximos operacionais, que permitam ao sistema elétrico melhor suportar períodos hidrológicos adversos, imediatos e sucessivos. Implica assinalar, com a devida ênfase, que não há uma política que objetive a recarga dos reservatórios, considerando seu completo enchimento. Sempre há a esperança de que os próximos períodos de chuva serão melhores que os anteriores e, com isso, sempre há a esperança de que os reservatórios poderão ser enchidos naturalmente, ficando, assim, na dependência de São Pedro, ou seja, quando a sorte ajudar. Deve-se notar que, por anos seguidos, ao término do período chuvoso, o nível dos reservatórios, principalmente das Regiões SE/CO e NE, tem apresentado um enchimento da ordem de 50%. Deste modo, a operação do sistema elétrico tem iniciado os períodos de estiagem com disponibilidade de somente metade da capacidade de reservação. Diante da imprevisão da intensidade de chuvas para recarregar os reservatórios, é relevante avaliar um ajuste no critério de operação, privilegiando o armazenamento. Atualmente, é praticada uma estratégia de aversão ao risco de falta de água nos reservatórios. Seria importante analisar o critério de aversão ao risco de transbordamento, o que mudaria a gestão de volumes armazenados, privilegiando a segurança de suprimento e dando ao ONS maior flexibilidade para gerir os períodos hidrológicos adversos. De outra forma, o enchimento desses reservatórios somente ocorrerá quando houver períodos sucessivos generosos de chuvas, o que se torna cada vez mais imprevisível. Sabe-se que o enchimento programado de reservatórios, mesmo que seja realizado em um período de alguns anos, demandará uma geração térmica na base, que tem o seu custo. No entanto, é preciso que se saiba qual é este custo, de que forma ele pode ser pago e por quanto tempo. Cabe dar ao consumidor a opção de ter uma situação mais segura de suprimento elétrico e conhecer uma forma mais segura de operação, com maior reservação, que atenue as consequências dos riscos imprevisíveis de falta de chuvas. Afinal, o consumidor está pagando parcelas de um custo semelhante toda vez que as bandeiras tarifárias são acionadas, o que resolve uma situação de curto prazo, mas não gera reservas de segurança. No tocante ao custo do enchimento dos reservatórios com a utilização da geração térmica na base, vale lembrar que, se os níveis dos reservatórios forem mantidos em cotas superiores às atuais, um mesmo metro cúbico de água turbinada em uma usina hidroelétrica gerará um volume maior de energia elétrica, pois a potência na geração será mais elevada. Deste modo, é possível se ter um superávit de energia e de receitas, que hoje não está sendo realizado e que, se concretizado, poderá compensar significativamente os custos de uma geração térmica para o enchimento dos reservatórios, assim como a manutenção de uma política estratégica de maior reservação hidráulica. Em resumo, é importante que se analise uma forma de maior utilização dos volumes de reservação hidráulica existentes, pelos motivos aventados. Esses reservatórios são ativos que foram construídos com recursos públicos e podem ser mais intensamente utilizados, dando maior segurança e robustez ao sistema elétrico brasileiro. Sidnei Martini é Professor da Escola Politécnica da USP e pesquisador associado do GESEL-UFRJ – Grupo de Estudos do Setor Elétrico. Nivalde de Castro é Professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do GESEL. Roberto Brandão é Pesquisador Sênior do GESEL-UFRJ.

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Autor: CANAL ENERGIA

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